Nas pedras da calçada eram visíveis as marcas das pegadas impressas sob os calhaus. À medida que as vislumbrava apercebia-me do passo incerto levado ao acaso por entre as massas da multidão. Assemelhavam-se à incerteza traçada em linhas de hesitação. Eram riscos de carvão riscados por entre as marcas de giz onde as crianças brincaram noutros dias, talvez alegres. Sombras dum andar arrastado com o calçado gasto e roto. Pegadas esbatidas, indeléveis e resistentes á chuva que cai de mansinho para não atrapalhar esse passar. Uma após outra, as pegadas surgiam arranjadas e compassadas como o ar de quem respira e dá vida ao sujeito que cambaleante ali passou indiferente aos olhares de quem se cruzava. A certa altura as pegadas param, perde-se o rasto esfumaçado por entre o grito dos aflitos que ali se cruzou. Fito o círculo deixado sobre o tapete de pedra e a sombra de quem ali se sentou entoando cantigas para enganar a fome. Escuto a invisível melodia da indigência que dança aos meus ouvidos como uma valsa compulsiva tomando como acordes todas as outras sombras que ali ficaram. É um preludio da penúria de gentes, ás vezes, do bem mas que não tem morada certa. São as pegadas da degradação que teimamos em não ver e da fome que não conseguimos sentir. Sãs as marcas deixadas pela solidão de alguém que já viveu, em tempos, num jardim repleto de sorrisos. São as pegadas que a vida não apaga, por muitas voltas que a vida dê.
Sob as pedras das calçadas jazem pegadas falecidas de gente que ali chorou, sofreu e viveu...
Maria Escritos
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