A vida é um ciclo composto de vários outros ciclos. O da infância, o da adolescência, o da juventude … o da alegria, o da tristeza, o da felicidade, o da dormência…enfim, vários.
Tudo tem um começo e tudo tem um fim.
Quando eu era criança e os meus pais estavam ainda casados, de entre os quatro filhos, eu fui a eleita para ser o saco de porrada da minha mãe. Por tudo e por nada presenteava-me com os “cinco mandamentos” bem abolachados na cara, isto sem contar as vezes em que cortava um pedaço de mangueira e me desfazia numa sova. Mais ingrato que tudo é que depois se vangloriava do seu feito e obrigava-me a mostrar às vizinhas as marcas deixadas no meu franzino corpo. Esse ciclo passou e seguiu-se outro quando o meu pai na véspera do meu 13º aniversário saiu de manhã para ir trabalhar e nunca mais voltou…a casa!!!
Foram anos de tormentos forçados e como desejei mais do que nunca ser aquela menina que enfrentava apenas as vergastadas da mangueira. Enfrentei bebedeiras, aturei pancada e injúrias daquela que me carregou no ventre, e a quem chamo mãe. Foi um ciclo de séculos a escutar a sua raiva vociferada contra mim, apenas e simplesmente porque me pareço com o meu pai. Tive de cuidar dos meus três irmãos, quando eu ainda precisava de quem cuidasse de mim. Muitas lágrimas verti no escuro do meu quarto desejando ter uma mãe que se risse comigo em vez de me bater. Muitas foram as lágrimas vertidas por mais um dia sem ouvir uma palavra amiga.
Fui forçada a ir trabalhar aos 13 anos para haver dinheiro em casa no fim do mês. Outro ciclo da minha vida. A desunião da família trouxe a discórdia e dos maus exemplos da mãe vieram as más escolhas dos filhos. Aos 16 anos parecia um bicho-do-mato. Nessa altura tinha medo de tudo e medo de nada. Queria fugir de tudo aquilo que desprezo mas temia que a sombra da minha mãe me perseguisse para me atormentar. Vivia apavorada vendo a sua sombra cambaleando na minha direcção pronta para me agredir. E aterrorizava-me só de imaginar o seu olhar colérico.
Um dia tive de escolher: ou me matava ou fugia de casa. Hesitei pela minha irmã mais nova, mas depois tranquilizei-me pois ela nunca foi atingida com nada. Era a protegida, a maninha caçula. Escapuli-me pelo terraço, no maior silêncio apenas com a roupa do corpo e o meu diário. Ainda não tinha dado as 8.30 e já eu atravessava a ponte sobre o rio Douro indecisa entre atirar-me dali mesmo ou continuar. Para onde ir? Fui ter com o meu pai. No mesmo dia arranjei trabalho e um quarto onde dormir. E durante alguns meses acreditei que fui feliz. Até ao dia em que os meus irmãos às escondidas me fizeram saber que a minha mãe chorava por mim. Amoleci o coração e lá voltei a casa. Começou o pesadelo outra vez. O estado normal da minha mãe era a embriaguez e o prato do dia eram os insultos e a porrada. Mudámos de casa tantas vezes que já nem me recordo de todas as paredes onde deixei gravadas as minhas dores.
Decidi, num outro ciclo, voltar aos estudos em regime pós laboral. E até isso se tornou um pesadelo para mim.
- “Gastas o dinheiro mal gasto nos estudos. Podes ganhar a vida a lavar escadas e para isso não precisas de estudos. Abre os olhos sua besta!” – dizia a minha mãe.
Tive um esgotamento como é óbvio. Em pleno ano lectivo de um curso intensivo nocturno fui-me abaixo. Deixei-me abater com o peso das palavras marteladas anos a fio. Consegui recuperar a saúde com fármacos e o ano lectivo á base de muito estudar.
Mudei-me para um quarto sozinha pois o salário não me permitia ter mais. Mas para mim chegava desde que eu tivesse paz. Muitas vezes perguntei porque me afligia e ainda aflijo com o sofrimento da minha mãe que tanto me maltratou. Muitas vezes perguntei porque nos deixou o nosso pai. Tantas e outras vezes quis ser amada em vez de espancada pelos erros de criança. Tantas vezes quis não ter nascido, não para esta vida. E no entanto, quem me fez tanto mal hoje depende de mim e eu amo-a apesar de tudo.
Estou num ciclo em que tenho sede de um afago carinhoso, e vontade de ser amada todos os dias, antes que o ciclo que comanda a vida se feche e me tire o direito de ser quem sou. E é nos mais pequenos gestos que eu busco as luzes do amor, porque de grandioso já tenho o ciclo da vida
Talvez eu não saiba amar, nem saiba o que é o amor. E se assim for, tenho de procurar saber porque me dói tanto no peito quando aqueles que me são mais queridos e chegados se esquecem de mim.
Hoje, e só por hoje, vou abraçar o vazio e mudar-me para a solidão...Procura-me amanhã ao luar por entre o gorgolejar da cachoeira... Mas por hoje deixa-me só!
Maria Escritos
Gostei muito deste teu texto. É mesmo autobiográfico?
ResponderEliminarUm grande abraço
Luís Gaspar, sim, do FB
Ao ler o teu texto revi-me em certos exertos e recordei tempos passados... enfim, falar deles de certa forma é um alivio...
ResponderEliminarNão nego que foi dificil, mas tambem tenho de dizer que esses tempos fizeram de mim o que sou hoje, e eu orgulho-me daquilo que hoje sou e daquilo que consegui obter.
Abraço
Luis Filipe Costa Passos
amiga nem sei bem que dizer,este sim é um texto real e que se passou contigo vê-se que sim,por aqui vejo que passaste por muito e não merecias ter sido tratada dessa forma e nesse tempo não havia o que há agora de as crianças maltratadas serem tiradas aos pais.Se ainda tratas da tua mãe acredito não deve ser assim tão fácil esqueceres esse passado terrivel,mas pelo menos tenta,pelo menos forte vê-se que és e corajosa,para teres conseguido deitar cá para fora tudo isto que se passou contigo,mas como dizem aqui e é verdade,é um alivio e faz bem não ficares com essas feridas e com e com esses fantasmas a remoer ai dentro.
ResponderEliminarbjs e que agora comeces a renascer e consigas ser feliz
fiquei estrememente comovida com tua história,
ResponderEliminartbm lembrei-me de uma infancia sofrida, sem mãe, com uma madrasta terrivel vendo meus irmãos um por um indo embora, em busca de felicidae, hoje estamos todos juntos,ela continua lé sofrendo, emfim foi o que nos ensinou...
um bj e procure a tua felicidade não desista